Naquela época, ainda não era proibido aprisionar pássaros silvestres (e com que demora essa isso chegou!). E eu, menino de subúrbio bem atrasado, sem qualquer consciência ecológica, adorava caçá-los vivos e prendê-los em gaiolas: capturá-los. Depois, amansava-os, até que começassem a cantar dentro daquelas prisões.
Aos dez anos de idade, eu já era “mestre” em fazer isso, graças a uma disciplina de observador, que levava horas e horas a estudar os hábitos dos bichinhos. Todo dia, era a mesma rotina: acordava antes do dia clarear, pegava a gaiola e o alçapão e ia ficar na espreita, onde houvesse um passarinho cantador.
Ali, depois de observar bastante seus hábitos, preparava a cilada, que consistia em atrair o pequeno pássaro para a gaiola, na qual se encontrava outro de sua espécie (denominado pelos pegadores de passarinhos como “o chama”). Dependurado na gaiola, ficava o alçapão, uma armadilha semelhante a uma pequena gaiola, que na parte de cima possuía uma tampa móvel, a qual se fechava e prendia o incauto pássaro quando esse achava de comer o milho alpiste depositado estrategicamente na base do engenho[1].
Muitos deles eram fáceis de ser aprisionados e não me davam muito trabalho. Não raras vezes, logo na primeira tentativa, eu os pegava. Os colegas “caçadores” (meninotes de minha idade) diziam que eu tinha muita sorte, pois, nessas brincadeiras, acabava pegando passarinhos que, naquele tempo, valiam algum dinheiro (acho que havia um pouco de sorte, mesmo. Mas, não podia deixar de considerar minha “competência” de caçador de passarinhos, já que não media sacrifícios ou engenhosidades para capturá-los).
Outros pássaros, no entanto, eram extremamente espertos. Muitas vezes chegavam à borda do alçapão, inclinavam todo o corpo lá dentro e, como se soubessem que tipo de armadilha era aquela, apanhavam os grãos de milho alpiste lá no fundo, sem encostar na peça que acionava o fechamento da tampa. Aquilo era de dar nos nervos: ver o bichinho chegar na boca do alçapão e depois ir embora (às vezes até de papo cheio, às minhas custas).
Mas, aí é que minha “competência” se revelava em detrimento da sorte. É que, após fazer isso uma, duas, três, várias vezes, numa hora, num outro dia qualquer, acabava que o bichinho – de tão acostumado a me dar nó – se atrapalhava e zapt caía na minha armadilha. E eu saía correndo, com o coração em disparada, saltando as lápides e as cruzes do campo do cemitério (que era uma espécie de quintal da casa onde eu morava, dada a proximidade a essa e a ausência de muros nas laterais…acho que foi por isso que perdi o medo da morte! (risos)).
Às vezes, aquele ritual levava semanas: o passarinho ia até a boca do alçapão, olhava para dentro e ia embora. Ou então, os mais espertos iam e comiam o alimento sem ativar a armadilha. Mas eu não perdia a paciência nem a esperança de ser dono daquela pequena criatura. Assim, quando percebia que não teria outro jeito, amarrava um longo pedaço de linha na peça que fechava a tampa e ficava escondido numa moita. Então, quando o danado estava lá a fazer-me de trouxa, eu dava um puxão na linha para acionar o dispositivo e o capturava.
O grande problema dessa técnica era que, caso o passarinho conseguisse escapar antes de a tampa se fechar, era mais que provável que nunca mais se aproximasse da armadilha. E como a probabilidade de ele “sentir” a manobra era muito grande (o puxão na linha sacudia o alçapão antes de fechar a tampa), eu somente partia para esse recurso quando decorridos muitos dias da caçada, sem êxito.
Depois de capturado, após três ou quatro semanas, o pássaro já estava domesticado. Alguns ficavam tão acostumados ao convívio humano e à comida fácil que se podia soltá-los e eles retornavam à gaiola, alegres e cantantes, pois haviam se acostumado ao cativeiro, assim como fazemos nós com nossas “gaiolas sociais” (empregos, vícios, shoppings centers, entre outros tantos).
Todavia, a grande lição que recebi dessa época em que capturava pássaros, ocorreu quando eu já devia ter por volta de uns doze ou treze anos de idade. Naqueles dias, surgiu no “campo do cemitério” um imenso e belo canário-da-terra acompanhado de sua fêmea. Para quem não sabe, no mundo dos pássaros, normalmente (e ao contrário do que acontece com a raça humana), os machos são mais vistosos que as fêmeas. Os canários da terra – tanto os machos quantos as fêmeas – nascem pardos. Posteriormente, em regra, os machos mudam de cor e se tornam amarelos, quase da cor da gema-de-ovo, com um sinal quase avermelhado na cabeça (chamado de “cravo”)[2], enquanto que as fêmeas permanecem pardas por toda a vida (com algumas raras exceções)[3].
Pois bem: esse canário era o mais belo que eu já tinha visto naquelas paragens. Além da cor bastante amarelada, era maior que os de sua espécie e cantava como nenhum outro. Sua presença se fazia ainda mais marcante em virtude do contraste existente entre o amarelo-gema-de-ovo de sua penugem e a parda, da penugem da fêmea.
É claro que para um garoto que adorava capturar passarinhos, a chegada daquele espécime representava um grande desafio. E de fato, o foi!
Não me recordo bem, mas acho que levei meses (talvez uns três ou quatro) tentando capturar aquele belo canário. Realmente, precisei usar de todas as minhas habilidades para capturá-lo.
E, numa inesquecível manhã, eu finalmente consegui.
Lembro-me daquela manhã como se fosse hoje. Eu corri feito alucinado em direção à armadilha, com o coração quase saindo pela boca, sem ver nada mais ao redor e, com as mãos trêmulas, segurei aquele prêmio, escondendo-o sob a camisa, junto ao peito.
Somente algum tempo depois eu viria a perceber que o bichinho também estava com o coração dele em disparada…só que por causa do medo…debatendo-se dentro da pequena armadilha. Foi então que aprendi a mais importante lição de minha vida.
Eu sabia que, no começo, os pequenos pássaros, debatiam-se bastante dentro das gaiolas até acostumarem-se com a proximidade humana. Alguns chegavam a se machucar, coitados, mas acabavam se tornando tão dóceis que alguns podiam ficar fora da gaiola, pousados no meu dedo, cantando.
Mas com aquele lindo canário, era diferente. Passaram-se semanas e ele não se acostumava dentro da prisão. E muito menos, cantava.
Naquela época aprendi, também, que alguns pássaros são monogâmicos. Pelo menos enquanto puderem estar juntos.
O “meu” canário deixara uma fêmea do lado de fora e eu até começara a pensar em capturá-la para que ela fizesse companhia ao prisioneiro, mas o aprendizado veio, felizmente, na frente!
Eu comecei a perceber que o “meu” canário sofria demais nesse processo de domesticação e aquilo começou a me incomodar. Sim: incomodava-me. Eu queria muito vê-lo manso dentro daquela gaiola. Queria ouvi-lo cantar, como ele fazia quando estava solto e também como faziam os outros canários que foram amansados. Então, eu entrei num conflito intenso, pois queria domesticá-lo, mas percebia que era um processo doloroso. Só lembrando que isso aconteceu há quase quarenta anos e que eu era apenas uma criança (e, possivelmente, uma “criança má”…).
Então, resolvi soltá-lo. Mas eu não tinha “coragem” de ir contra mim mesmo…
Foi assim que me surgiu uma ideia: ao invés de soltá-lo, resolvi fazer com que ele se soltasse!
Um dia, ao invés de trancar a gaiola, como costumava fazer após limpá-la e colocar água e comida, deixei-a aberta…ela estava dependurada na parede da frente da casa…e eu fui para o fundo da casa. Lá fiquei por muito tempo, chorando, sentado no chão, com a cabeça apoiada nos braços cruzados sobre os joelhos.
Não sei quanto tempo levei ali, mas pareceu-me uma eternidade. Até que tomei coragem e retornei à frente da casa onde estava a gaiola. E lá estava ela com a portinhola aberta…e vazia! E veio-me um misto de tristeza e de alegria ao mesmo tempo, tudo muito confuso.
E foi então que ouvi o canto do belo canário, que estava pousado num galho de pé de fruta-pão que existia em frente à casa onde eu morava. E ele estava ao lado de sua fêmea.
A partir de então, passei a abrir outras gaiolas. Mas percebi que alguns dos seus prisioneiros estavam tão acostumados com aquela vida que “preferiram” ficar por ali mesmo. Outros, foram embora, mas acabaram indo parar noutras gaiolas, pois ficaram condicionados a isso.
Muitos anos depois, viria a lembrar daquela lição em um relacionamento muito parecido com aquele entre eu e o belo canário. E ela me ajudou a “libertar” minha “canária”. E, também, me ajudou – noutras ocasiões – a me libertar de certas gaiolas.
Acho que aprendi a fazer escolhas.
Mas, por outro lado, essa história me ensinou que pessoas não são canários. Então eu passei a conversar sobre esse processo de “liberação do cativeiro” com elas.
Todavia, nenhuma lição é completa. Agora, parece que preciso aprender a não precisar conversar sobre a liberdade, seja com meu “prisioneiro”, seja com quem me prendeu ou me prende.
Mas, enquanto isso, o menino está lá no fundo da casa, sentado no chão, com a cabeça apoiada nos braços cruzados sobre os joelhos….chorando, querendo que o canário ao menos lhe dissesse porque, ainda que livre, sequer soltou seu belo canto.
Talvez porque, canários não falam…
[1] https://www.google.com.br/search?q=al%C3%A7ap%C3%A3o&espv=2&biw=1366&bih=667&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ei=cT-XVcSJE8OWNtOogbAO&ved=0CCMQsAQ&dpr=1#imgrc=Gs42TsAGnSRwoM%3A
[2] http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.pedromigao.com.br/ourodetolo/wp-content/uploads/2015/02/CAN%25C3%2581RIO-DA-TERRA-VERDADEIRO_Sicalis_flaveola_1.jpg&imgrefurl=http://www.pedromigao.com.br/ourodetolo/2015/02/jogo-misto-andre-diniz/canario-da-terra-verdadeiro_sicalis_flaveola_1/&h=929&w=1228&tbnid=laM6e26gqjRqTM:&zoom=1&tbnh=151&tbnw=199&usg=__domGD3pGB-rt9lzpAt0MazMcg0I=&docid=SfpOxCXS3Gf_iM&itg=1
[3] https://www.google.com.br/search?q=femea+do+canario+da+terra&espv=2&biw=1366&bih=667&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=xFGXVYO7LYa0ggTG5YCQCQ&ved=0CAcQ_AUoAg#imgrc=4CzzY04jnPHAnM%3A